ATA DA QUINTA SESSÃO ESPECIAL DA TERCEIRA SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA DÉCIMA LEGISLATURA, EM 13-09-1991.

 


Aos treze dias do mês de setembro do ano de mil novecentos e noventa e um reuniu-se, na Sala de Sessões do Palácio Aloísio Filho, a Câmara Municipal de Porto Alegre, em sua Quinta Sessão Especial da Terceira Sessão Legislativa Ordinária da Décima Legislatura, destinada a apresentar Painel sobre o Centenário da Morte do Poeta Antero de Quental. Às quatorze horas e quinze minutos, constatada a existência de “quorum”, o Senhor Presidente declarou abertos os trabalhos e convidou os Líderes de Bancada a conduzirem ao Plenário as autoridades e personalidades presentes. Compuseram a Mesa: Vereador Omar Ferri, 2º Vice-Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, Presidente em exercício; Vereador Antonio Hohlfeldt, Prefeito Municipal de Porto Alegre, em exercício, autor da proposição que originou a presente solenidade; Senhora Consulesa Rayla Hansek Puro Silveira, esposa do Cônsul de Portugal; Senhor Jaime Raposo Costa, Conselheiro Cultural de Portugal, representando o Embaixador de Portugal; Senhor Regis René Eggers, Chanceler de Portugal, representando o Cônsul desse País; Senhor Firmino Sabrito, representando a Associação Rio-Grandense de Imprensa; Senhor Carlos Alberto Noronha Filho; Vereador Isaac Ainhorn, Secretário “ad hoc”. Após, o Senhor Presidente leu correspondência recebida pela Casa relativa ao evento e concedeu a palavra ao Vereador Antonio Hohlfeldt, que discorreu sobre os objetivos da presente Sessão, comentando projeto em andamento, na Casa, denominando Rua Antero Quental um logradouro público. Às quatorze horas e trinta e oito minutos o Senhor Presidente suspendeu os trabalhos, nos termos regimentais, sendo os mesmos reabertos, constatada a existência de “quorum”, às quatorze horas e trinta e nove minutos. Em continuidade o Senhor Presidente concedeu a palavra aos palestrantes responsáveis pelo presente Painel. O Senhor Mathias Schaff, Chefe do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, discorreu acerca de Concurso Literário que será promovido pela referida Universidade, acerca da figura do poeta português Antero Quental. O Senhor Carlos Alberto Noronha Filho, Presidente do Instituto Cultural Brasil-Portugal, proferiu palestra intitulada “Panorâmica Histórica de Portugal”. A Professora Valesca de Assis, representando a Secretaria Municipal de Cultura, proferiu palestra sobre “Antero de Quental: o Homem”. A Professora Rosa Maria Morsch, representando a Universidade do Rio dos Sinos, proferiu palestra sobre “A trajetória mental de Antero Quental em sonetos”. A Professora Maria Luiza Remédios, representando a Pontifícia Universidade Católica, proferiu palestra sobre “A filosofia de Antero Quental e as idéias de 1870”. A Professora Maria Luiza Armando, representando a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, proferiu palestra sobre “Antero de Quental: a geração de 70 e a literatura sul-rio-grandense”. E o Senhor Jaime Raposo Costa, representando o Embaixador de Portugal, discorreu sobre a importância de Antero de Quental para as culturas brasileira e portuguesa. A seguir, o Senhor Presidente agradeceu a presença de todos e, nada mais havendo a tratar, declarou encerrados os trabalhos às dezesseis horas e quarenta e um minutos, convocando os Senhores Vereadores para a Sessão Ordinária da próxima segunda-feira, à hora regimental. Os trabalhos foram presididos pelo Vereador Omar Ferri e secretariados pelo Vereador Isaac Ainhorn, Secretário “ad hoc”. Do que eu, Isaac Ainhorn, Secretário “ad hoc”, determinei fosse lavrada a presente Ata que, após lida e aprovada, será assinada pelos Senhores Presidente e 1º Secretário.

 

O SR. PRESIDENTE (Omar Ferri): No exercício de Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, e nesta oportunidade em que o Sr. Presidente, efetivamente, assume a chefia do Poder Executivo Municipal, Presidente da Câmara, Ver. Antonio Hohlfeldt, que foi quem requereu este Painel sobre a vida e a obra do Poeta Antero de Quental, eu declaro abertos os trabalhos na tarde de hoje e informo aos senhores presentes e assistentes a composição da Mesa dirigente dos trabalhos de hoje: Ver. Omar Ferri, que sou eu, Presidente em exercício da Câmara Municipal; Exmo Sr. Antonio Hohlfeldt, Prefeito Municipal de Porto Alegre em exercício; Exma Srª Consulesa Rayla Hansek Puro Silveira, digníssima esposa do Sr. Cônsul de Portugal; Ilmo Sr. Jaime Raposo Costa, Conselheiro Cultural de Portugal designado pelo Embaixador Leonardo Mathias, é, portanto, quem representa, nesta solenidade, o Embaixador de Portugal; Ilmo Sr. Regis René Eggers, Chanceler de Portugal, que representa o Sr. Cônsul; Sr. Firmino Sabrito, que representa a ARI; e o Sr. Carlos Alberto Noronha Filho, que, após o afastamento do Prefeito Antonio Hohlfeldt para cumprir a pauta da Chefia do Executivo Municipal, a Mesa terá o prazer de convidá-lo para que sente junto à Mesa dirigente dos trabalhos.

Por proposição do Ver. Antonio Hohlfeldt, a Câmara Municipal está instalando, nesta oportunidade, uma Sessão Especial para desenvolver, nesta Sessão, um Painel sobre a vida e obra do Poeta Antero de Quental. Farão uso da palavra, neste Painel, pela ordem: em 1º lugar, o Sr. Carlos Alberto Noronha Filho; a seguir, a Srª Profª Valesca de Assis; em 3º lugar, a Srª Profª Rosa Maria Morsch; em 4º lugar, a Srª Profª Maria Luiza Remédios, que representa a PUC; e, finalmente, a Profª Maria Luiza Armando, representando a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Todos esses painelistas, no momento em que eles iniciarem a sua palestra, vão dizer as entidades que estão representando e o enfoque da palestra. Nestas condições, declaro abertos os trabalhos da presente Sessão.

Antes de passar a palavra ao primeiro painelista, gostaria de dizer que a Câmara Municipal recebeu os seguintes telegramas. (Lê telegramas recebidos.)

O Prefeito Municipal em exercício, Ver. Antonio Hohlfeldt, terá que se ausentar por uma série de compromissos assumidos na agenda do Prefeito. Temos o prazer de passar a palavra ao Sr. Prefeito Municipal em exercício, Ver. Antonio Hohlfeldt, para a sua manifestação

 

O SR. ANTONIO HOHLFELDT: Muito obrigado, Ver. Omar Ferri, Presidente da Casa em exercício; Senhoras e Senhores, especialmente Senhor Representante da Embaixada de Portugal. A iniciativa desta tarde coube ao companheiro Carlos Noronha Filho, quando nós fizemos uma reunião com as professoras, aquelas especialistas que trabalham com a vida e a obra do escritor Antero de Quental. Efetivamente, hoje, por um acaso, assumi a Prefeitura no lugar do Prefeito Olívio Dutra, motivo pelo qual estarei ausente, devido a uma pauta imensa de compromissos, até mesmo porque se inicia a Semana Farroupilha, portanto a agenda é grande.

Mas queria também agradecer ao Ver. Omar Ferri pela condução dos trabalhos, de todos os senhores e senhoras, especialmente da representação de Brasília, e fazer aqui uma referência muito especial ao meu Professor de Literatura Portuguesa, Professor Marino Klausberger, o que me dá muito prazer, porque fazia muito tempo que eu não via o Marino aqui. E também tenho o prazer de rever o companheiro dos tempos de faculdade, que é o hoje Professor Mathias Schaff, por quem todos nós tememos, em certa época, pela sua vida, pela sua segurança, graças à ditadura que esse País viveu e às situações que o Mathias viveu. Reencontro o Mathias com uma alegria imensa nesta Casa, ligado à área de letras, de literatura, que nos interessa muito. Eu queria prestar contas de maneira pública, também, de que o Projeto de Lei que o companheiro Noronha nos havia pedido em relação à denominação de uma rua com o nome de Antero de Quental já tem a aprovação da Comissão de Justiça e Redação e da Comissão de Educação e Cultura e, segundo a previsão, deverá ser votado na próxima segunda-feira, na Ordem do Dia. Nós queríamos ter inaugurado hoje a nossa homenagem, a nossa rua, mas não foi possível, mas assim que o Prefeito Olívio sancionar a gente vai fazer rapidamente o encaminhamento da inauguração. Ver. Omar Ferri, eu queria lhe agradecer pela condução dos trabalhos, pela sua responsabilidade frente à Presidência da Casa, e dizer da minha satisfação por ter podido comparecer, ainda que rapidamente. e lastimar não poder acompanhar as palestras que me interessariam diretamente. Muito obrigado.

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: A Mesa agradece a V. Exª, Ver. Antonio Hohlfeldt, por sua presença neste painel.

 

(Feitas as despedidas, o Ver. Antonio Hohlfeldt retira-se do Plenário.)

 

O SR. PRESIDENTE: Alterando um pouco a ordem das manifestações dos senhores painelistas, falará, primeiramente, o Sr. Mathias Schaff. Gostaria de registrar que está presente também o Prof. Marino Klausberger. Solicito ao Prof. Noronha que faça parte da Mesa.

Tenho a honra de passar a palavra ao Sr. Mathias Schaff, Chefe do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que poderá, se quiser, usar a tribuna para sua manifestação.

Desejamos registrar a presença do Prof. Marino Klausberger.

 

O SR. MATHIAS SCHAFF: Agradecemos a oportunidade que a Câmara Municipal de Porto Alegre nos proporciona, a fim de que, de alguma forma, possamos homenagear o nosso mestre, Casado Gomes, recentemente falecido, e que estava muito ligado à divulgação da cultura e literatura portuguesas na nossa comunidade. Temos praticamente duas gerações de alunos do Curso de Letras das UFRGS, que foram formados pelo Prof. Casado Gomes e, então, achamos justo, lembrando a figura do grande poeta português e revolucionário, Antero de Quental, simultaneamente lembrar outra figura muito ligada à Literatura Portuguesa, que é o Professor Casado Gomes, falecido no dia 14 de janeiro deste ano. Permitimo-nos convidar a viúva do Professor para participar desta homenagem, porque no início do ano, logo após o falecimento do Professor, e a pedido do próprio Casado Gomes, recebemos o acervo, toda a biblioteca particular dele, que foi incorporada à biblioteca do Instituto de Letras da UFRGS. Este acervo soma cerca de dois mil volumes. Portanto, esta homenagem é mais do que justa! Para homenageá-lo ainda mais, resolvemos instituir um concurso literário em torno da figura do grande poeta português Antero de Quental, que pode ser de duas modalidades: em forma de poema e em forma de estudo literário. As inscrições vão de 13 de setembro a 13 de novembro do corrente ano, podendo participar qualquer cidadão, desde que seja alfabetizado e tenha condições de escrever. A apresentação material consta das instruções. Os critérios de avaliação e julgamento são crítico-literários. A comissão julgadora será constituída por três professores, sendo dois da UFRGS e um da PUC, e o resultado será publicado em 1992. Haverá uma premiação cujo maior mérito é a publicação dos trabalhos que forem selecionados em cada modalidade.

Agradecemos a oportunidade que nos foi concedida pela Presidência da Casa para que pudéssemos divulgar esse concurso. Muito obrigado.

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: A Presidência tem a honra de passar a palavra ao Sr. Carlos Alberto Noronha Filho, Presidente do Instituto Cultural Brasil-Portugal, que falará sobre “A panorâmica histórica de Portugal”.

 

O SR. CARLOS ALBERTO NORONHA FILHO: Por que comemorar a morte? Por que não proteger a vida? Estamos hoje aqui reunidos para comemorar os 100 anos da morte trágica do nosso irmão espiritual Antero de Quental. Há uma insondável morbidez no pacto, melhor seria, penso, ter lembrado 1992, quando então estaríamos festejando 150 anos de imortalidade. De uma maneira ou de outra sinto-me hoje um feliz e orgulhoso filho adotivo de Porto Alegre. E devo isso ao bom amigo e Presidente desta Casa, Antonio Hohlfeldt, que, decidida e entusiasticamente acatou a proposta do Instituto Cultural Brasil-Portugal e organizou este Painel. Feliz igualmente por ver que a Cidade que se diz açoriana resgatou em parte, e tão tardiamente, dívida tão antiga com o que foi o mais digno, o mais ilustre açorista. Refiro-me à homenagem que lhe prestam, por oportuna decisão desta Câmara de Vereadores ao aprovar Projeto de Lei de autoria do Sr. Presidente, denominando Praça Antero de Quental, poeta português da geração 70, a logradouro público no bairro Farrapos.

O que me surpreendeu foi o convite para participar deste Painel, que merece os nossos melhores anterianos. Não sendo historiador ou crítico literário, mas apenas um seguidor leal do ideário anteriano, penso que minha contribuição pouco possa acrescentar ao temário. Quando recebi a incumbência de traçar um panorama histórico de Portugal, animei-me com a oportunidade, há muito desejada, de poder divulgar uma das mais importantes contribuições de Antero de Quental à nossa historiografia. Embora minha pretensão fosse a de simplesmente unir-me com vocês e ler e convidá-los a uma profunda reflexão sobre “As causas da decadência dos povos peninsulares”. Memorável, corajosa e lúcida, na visão de Antero sobre a situação dos povos ibéricos nos séculos XVII, XVIII, que chega a Antero e, ultrapassando-o, vem até os nossos dias, após o longo tempo que vai da efervescência dos ideais progressistas da geração 70; Antero é o teu mentor – passa pela tempestade de liberdade que varria a Europa e Michelet, Victor Hugo, Pradhon, Hegel, Darwin, Renan, assiste a agonia, a já agonizante monarquia, a má implantação da bem-intencionada República que aparece na noite de pesadelos de sangue no nazifascismo.

Com a alvorada do dia 25 de abril, retira-se o texto de Antero dos bolorentos porões ditatoriais, que deles sai límpido e cristalino como sempre foi, nas confirmações que é inatingível a possibilidade de sepultar idéias e ideais.

O tempo que disponho não permite, como tanto gostaria, gostaria de ler-lhes o texto na íntegra. Como não pretendo ser intelectualmente desonesto comentando-o, assim resta-me passar-lhes alguns dos seus trechos, na angustiante expectativa que eles vos levem à animação para sua leitura e, estou certo, vos abram a janela por onde entrarão a brisa da verdade, a luz e a firme determinação de rever a nossa história, sem os grilhões oficialistas e com várias exceções a tem submetido, sem preconceito e sem medo.

Que esses trechos das “Causas da decadência dos povos peninsulares”, apresentado nas Conferências Democráticas de 27 de maio de 1871, vos sirva, na companhia de Antero, de semente e alimento para novas importantes descobertas.

Meus senhores: a decadência dos povos peninsulares, nos últimos três séculos, é um dos fatos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história, seguindo quase sem transição, é período de força e glória, de rica originalidade, referia-se o poeta ao grande movimento intelectual da Europa Medieval, incluindo os grandes mestres peninsulares na Filosofia Escolástica, Teologia, criações nacionais dos ciclos éticos, arquitetura, artes, literatura, e cita Raimundo Lúlio, o papa português João XXI, as escolas de Salamanca e Coimbra, Averróis, Dr. Topael, Maimônides e Avise, o Romancero e as lendas de Cid lembram as belas góticas dos Mosteiros da Batalha e Catedral de Bispos, os estudos geográficos de D. Henrique e a Escola de Sagres, Bartolomeu Dias, Magalhães e Colombo.

O Santo Império Alemão oferece a orgulhosa coroa imperial, o Afonso, o sábio, rei de Castela. No Séc. XV, Dom João I, de Portugal, árbitro de várias questões internacionais, e geralmente considerado em influência e capacidade como um dos primeiros monarcas da Europa. O momento regenerador da Renascença tão bem preparado e precocemente abortado entre os peninsulares.

Diz Antero: “Este movimento só foi entre nós representado por uma geração de homens superiores e primeiros. As seguintes, que o deviam consolidar, fanatizadas, entorpecidas e impotentes, não souberam compreender, nem praticar o espírito, tão alto e tão livre, desconheceram-no ou o combateram”.

Só nos meados do século XVI é que isto conservou-se à altura daquela época extraordinária de criação e liberdade de pensamento.

Cita, ainda, Camões, Cervantes, Gil Vicente, Sá Miranda, Lopes da Veiga e Ferreira, Miguel Servet, Sepúlveda, Sanches. Nas artes: Murilo, Velásquez, Ribera.

E continua: “Este mundo brilhante, criado pelo gênio peninsular na sua livre expansão, passamos quase sem transição para um momento escuro, inerte, pobre, inteligente e meio desconhecido. Bastaram para essa total transformação cinqüenta ou sessenta anos”.

No princípio do século XVI, quando Portugal deixa de ser contado entre as nações e se desmorona por todos os lados a monarquia anômala, inconsistente e desnatural de Felipe II, quando a glória passada já não pode encobrir o luminoso do edifício presente e se afunda a península sob o peso de muitos erros acumulados, então aparece franca e patente, por todos os lados, a nossa improcrastinável decadência.

A Coroa da Espanha é posta em leilão sangrento no meio das nações e adjudicada, no fim de doze anos de guerra, ao neto de Luis XIV. Inicia-se a dinastia estrangeira, a Espanha perde Nápoles, Cecília, Milanês e Países Baixos. A Inglaterra transforma Portugal no meio de “cavilosos tratados”, numa espécie de colônia britânica. As Malucas passam a ser holandesas. Na Índia, lutam sobre os nossos despojos holandeses, ingleses e franceses. Na China e no Japão, desaparece a influência do nome português.

Na pacífica interior: as liberdades municipais, a iniciativa local das Comunas aos Fosais que davam a cada população uma fisionomia e vida próprias, sucede a centralização, uniforme.

A realeza torna-se absolutista, esquecendo a sua origem e missão, e crê ingenuamente que os povos não são mais do que patrimônio providencial dos reis.

E o pior é que os povos habituaram-se a sê-lo. O espírito de independência que inspirava o firme “si no, no!” da Idade Média adormece e morre no seio popular. O povo emudece; negam-lhe a palavra, fechando-lhes as Cortes. Como o que se passa a contar é com a aristocracia palaciana, com uma nobre cortesã, que cada vez se separa mais do povo pelos interesses e pelos sentimentos e que, de classe, transforma-se em casta. Essa aristocracia, como um embaraço na circulação do corpo social, impede a elevação desse elemento novo, a classe média, e contraria assim todos os progressos, por isso decai também a vida econômica: a produção decresce, a agricultura recua, estagna-se o comércio, desaparecem as indústrias nacionais; a riqueza, uma riqueza faustosa e estéril, concentra-se, enquanto a miséria alarga-se no resto do país. Diminui a população, pela guerra e emigração. Nunca povo algum absorveu tantos tesouros, ficando, ao mesmo tempo, tão pobre. O espírito nacional desanimado e sem estímulos cai em estado de torpor e indiferença. E o que nos mostra claramente esse salto mortal passando da Renascença para os séculos XVII e XVIII? E o mundo intelectual? Antero desespera: “A uma geração de filósofos, de sábios e artistas criadores sucede uma tribo vulgar dos eruditos sem crítica, dos acadêmicos, dos imitadores. Saímos de uma sociedade de homens vivos, movendo-se ao ar livre; entramos num recanto acanhado e quase sepulcral, com uma atmosfera turva pelo pó dos livros velhos e habitado por espectros de doutores. A poesia, depois da exaltação estéril, falsa e artificialmente provocada do gongorismo, depois da afetação dos conceitos, cai na imitação servil e ininteligente da poesia latina, naquela escola clássica, pesada e fradesca, que é a antítese de toda a inspiração e de todo o sentimento. Um poema compõe-se doutoralmente, como uma dissertação teológica. Traduzir é o ideal; inventar é perigoso e inferior. Fora desta realidade pungente, a literatura oficial e palaciana espraiava-se pelas regiões insípidas do discurso acadêmico, da oração fúnebre, do panagírico encomendado – gêneros artificiais, pueris e mais que tudo soporíficos”.

E o que esperar das artes? Antero olha para os mosteiros de Mafra e Escorial e vê nas lúgubres molhes de pedra a ausência de sentimento e a invenção da arquitetura jesuítica. Que triste contraste entre essas montanhas de mármore, onde se julgou atingir o grande, simplesmente porque se fez o monstruoso, e a construção delicada, aérea, proporcional, espiritual dos Jerônimos, da Batalha, da Catedral de Burgos. O espírito sombrio e desbravado da sociedade refletiu-se na arte, com uma fidelidade desesperadora que terá sempre perante a história uma incorruptível testemunha de acusação contra aquela época de verdadeira morte moral. Essa morte moral não invalida só o sentimento, imaginação, gosto; invalida, também, a inteligência, vem a depravação dos costumes. Nos grandes, a corrupção transforma da vida um ente, os reis dão exemplo de vício, da lentalidade e adultério. Nos pequenos, a corrupção hipócrita, a família do pobre vendida pela miséria aos vícios dos nobres e poderosos. Época das amásias e dos filhos bastardos. O que era então a mulher e o povo, em face da tentação do ouro aristocrático, vê-se bem no escandaloso. Processo da nulidade do matrimônio de Afonso VI e nas memórias do Cavaleiro da Oliveira, ser rufião a ter um ofício geralmente admitido e que se pratica com o aproveitamento na própria corte.

Quanto à religião, esta deixa de ser um sentimento vivo; torna-se uma prática ininteligente, formal, mecânica. O que eram os frades sabemos todos: os costumes pitoresco e ignóbeis dessa classe ainda hoje tão memorados pelos Decamerone da tradição popular. O pior é que esses histriões transformados eram ao mesmo tempo sanguinários. A Inquisição pesava sob as consciências como abóbada de um cárcere e abaixava o espírito público sob a pressão do terror. O que era no século XVII a moral pública di-lo com todo relevo de uma pena sarcástica e inexorável o Pe. Antônio Vieira na arte de furtar. Quanto à história da família e dos costumes privados, encontrâmo-los na carta de guia de cavalos de D. Francisco Manuel, nas farsas populares portuguesas e nos romances pitorescos espanhóis. Quais são as causas dessa decadência tão visíveis? Antero aponta três, e de três espécies, uma moral, outra política e outra econômica.

A primeira é a transformação do catolicismo pelo Concílio de Trento. A segunda, o estabelecimento do Absolutismo pelas ruínas das liberdades locais. A terceira, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenômenos acima agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, mostrando-nos claramente a revolução funesta que se operou na Península.

E estes três fatos eram exatamente o oposto dos três fatos capitais que se davam nas nações que lá fora cresciam, se mobilizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três fatos civilizadores foram a liberdade moral conquistada pela Reforma ou pela Filosofia; a classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas e diretora dos reis até o dia que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo atual, que veio dar às nações uma nova concepção do Direito, substituindo o trabalho à força e o comércio guerra de conquista. Ora a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento. Para quem a razão humana e pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito é o oposto do Absolutismo, hasteado na aristocracia e só em proveito dela governando; a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.

Assim, enquanto as outras nações subiam pelas virtudes modernas, nós descíamos peles vícios antigos.

A partir deste momento, Antero passa a uma longa e minuciosa análise sobre o Catolicismo do Concílio de Trento e sua importante contribuição à decadência dos povos peninsulares; classifica-o de imobilizador e intolerante, condescendendo que não inaugurou no mundo o despotismo religioso, mas organizou-o de uma maneira completa e até então desconhecida, situando a sua forma definitiva até o século XVI.

O fosso cavado pelo Absolutismo no seio do Cristianismo. A submissão dos povos à tirania da Igreja de Roma. A Reforma, o ódio e a cólera dominavam os corações dos sucessores dos apóstolos, repelia a idéia de conciliação com os protestantes, ou da mais pequena concessão, são fatos que merecem de Antero uma profunda reflexão, concluindo que é em grande parte a Reforma que os povos reformados que seguiram a revolução religiosa do século XVI, a Alemanha, a Holanda, a Inglaterra, os Estados Unidos, a Suíça, constituem as nações mais indulgentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriozas. E, as mais decadentes são exatamente as mais católicas.

E ironiza: “com reformas estaríamos hoje talvez à altura dessas nações, estaríamos livres, prósperos, inteligentes, morais, mas Roma teria caído”. O retrato que Antero faz dos jesuítas, dominando Roma e o Concílio de Trento, primeiro dando só aos legados do Papa o direito de propor reformas; segundo, substituindo o antigo modo de votar por nações o voto de cabeças, a maioria italiana, é claro, é irretocável. O texto prossegue com um imperdível apanhado de invenções conciliares como o pecado original, na seção 5ª. Ou o dogma da eucaristia, na 13ª (mais um passo para fazer entrar no Cristianismo o caminho da idolatria, para colocar o divino no absurdo). Ou ainda a obrigatoriedade da confissão, na 14ª (sem confissão não há remissão de pecados, a alma é incapaz de se comunicar com Deus, senão por intermédio do Padre). Surge o direito espiritual. Depois de passear com os jesuítas por vários países da Europa com uma trágica paragem na Polônia, trá-los para a Península e pergunta amargamente: e a nós, espanhóis e portugueses, como foi que o Catolicismo nos renovou? Com a Inquisição? Um terror invisível que pairava sobre a sociedade, a hipocrisia torna-se um vício nacional; a delação, uma virtude religiosa; a expulsão dos judeus e moiros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e indústria. A perseguição aos cristãos-novos faz desaparecer os capitais. Mas a Inquisição passa os mares e, tornando hostis aos índios, impedindo a fusão dos conquistadores e conquistados, torna impossível o estabelecimento de uma colonização sólida e duradoura. Apavora as populações indígenas na América e faz do mundo cristão um símbolo de morte: o terror religioso finalmente corrompe o caráter nacional e faz das duas nações generosas hordas de fanáticos endurecidos, o horror da civilização. No jesuitismo desaparece o sentimento cristão para dar lugar aos sofismas mais deploráveis a que jamais desceu a consciência religiosa: métodos de ensino, ao mesmo tempo brutais e requintados, esterilizam as inteligências, dirigindo-se à memória com o fim de matarem o pensamento inventivo e alcançam alhear o espírito peninsular do grande movimento da ciência moderna, essencialmente livre e criadora. O reino dos céus da Companhia de Jesus foi o Paraguai: perfeita ordem, perfeita devoção, uma coisa só faltava, a alma, isto é, a dignidade e a vontade, o que distingue o homem da animalidade. Eram estes os benefícios que levávamos às raças selvagens da América pelas mãos civilizadoras dos padres da Companhia de Jesus.

Enquanto arte e literatura, amostrava-se bem clara a decadência daquelas massas estúpidas de pedra da arquitetura jesuítica e na poesia convencional das academias, ou nas odes. Antero discorre, então, pela funesta influência da direção católica no mundo político. Como é que o absolutismo espiritual podia deixar de reagir sobre o espírito, o poder civil? O exemplo do despotismo vinha de tão alto, os reis eram tão religiosos, eram por excelência os reis católicos, a paixão dominar, e o orgulho criminoso de um homem apoiava-se na palavra divina. A teocracia dava mão ao despotismo; e a política, em vez de curar os interesses do povo, se inspirar num pensamento nacional, traía a sua missão, fazendo-se instrumento da política católica romana. Dom Sebastião, o discípulo dos jesuítas, vai morrer no Oriel da África pela fé católica, não pela nação. Tal é uma causa, se não a principal da decadência dos povos portugueses. Das influências, nenhuma foi tão universal, nenhuma lançou tão profundas raízes, feriu o homem no que há de mais íntimo, nos pontos mais essencial da vida moral, no crer, no sentir, no ser, envenenou a vida nas suas fontes mais secretas. Esta transformação de alma peninsular faz, então, íntimas profundidades, ter escapado das maiores revoluções, passam por cima dessa região quase inacessível, superficialmente, deixam-na na sua inércia. Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, o oculto, dissimulado, mas não inteiramente morto; lá existe um beato, um fanático ou um jesuíta. Esse moribundo que se ergue dentro de nós é o inimigo, é o passado, é preciso enterrá-lo por uma vez, e com ele o espírito sinistro do catolicismo. O texto alonga-se, ainda, sobre o comportamento da Monarquia Absolutista e decadente, que chega moribunda a Antero, devorada pelas conquistas, pela emigração, pelo ócio das classes dominantes, já divorciadas e antagonizadas com o povo, ao vício, à corrupção generalizada, a escravatura. A falida experiência colonial, em grande parte não conseguimos civilizar, isto é, harmonizar as culturas. E reafirma a sua convicçãode que a intolerância dos séculos XVI, XVII e XVIII levaram os portugueses à indiferença do século XIV. Finalmente, o espírito guerreiro da nação conquistadora, herdamos um invencível horror ao trabalho e num íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores dos dois mundos podem, sem desonra, consumir no ódio o tempo e a fortuna ou mendigar pelas secretarias um emprego, porque não podem-se intimidar é de trabalhar. Por isso, as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros que com elas enriquecem e riem das nossas pretensões. Quanto ao trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito. Parece-nos um símbolo servil. Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo e se engrandecem as ações. Nós preferimos ter uma aristocracia de pobres ociosos a ter uma democracia de prósperos trabalhadores. É o fruto que colhemos numa educação circular, de tradições guerreiras e enfáticas. A raiz do passado rebenta por todo o lado no nosso sol, rebentam sobre a forma de sentimentos e hábitos, conceitos; gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história. É, pois, necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização. É necessário um esforço viril, um esforço supremo; quebrar resolutamente com o passado. Respeitemos a memória de nossos avós, memoremos piedosamente os atos deles, mas não os imitemos; não façamos a luz do século XIV, espectros a que dá a vida emprestada o espírito do século XV.

Antero termina convocando os portugueses a oporem-se à monarquia centralizada e aderirem à federação republicana de todos grupos autônomos, de todas as vontades soberanas, alargando e renovando a vida municipal, dando um caráter radicalmente democrático, porque só isso é a base e o instrumento natural de todas as reformas práticas, populares e vinculadoras. Faz, ainda, apologia ao trabalho livre; a indústria do povo, para o povo e pelo povo, não dirigida pelo Estado, mas espontânea, não entregue à anarquia cega da concorrência, mas organizada de uma maneira solidária e eqüitativa, operando, sim, gradualmente, a transição para um novo mundo industrial do socialismo, a quem pertence o futuro. Essa é a tendência do século, essa também deve ser a nossa; o seu nome é a revolução. Revolução não quer dizer guerra, mas, sim, paz; não quer dizer licença, mas, sim, ordem, ordem verdadeira pela verdadeira liberdade. Só os seus inimigos, desesperando-as, podem obrigar a lançar mão das armas. Em ti, é um verbo de paz, porque é o verbo humano por excelência.

Meus senhores: há 1.800 anos apresentava o mundo soberano um singular espetáculo. Uma sociedade gasta que se abrira, mas que se abrira, mas que, no seu abrir-se, debatia-se, lutava, perseguia para conservar os seus privilégios, os seus preconceitos, os seus vívios, a sua podridão; ao lado dela, no meio dela, uma sociedade nova, embrionária, rica de idéias, inspirações e justos sentimentos, sofrendo, padecendo, mas crescendo por entre os padecimentos. A idéia desse mundo novo impõe-se gradualmente ao mundo velho, converte, transforma, chega um dia em que ilumina e a humanidade conta com uma nova civilização. Chamou-se a isso Cristianismo. Pois bem, meus senhores, o Cristianismo foi a revolução do mundo antigo, a revolução não é mais do Cristianismo. (Palmas.)

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: A próxima painelista é a Profª Valesca de Assis, que representa a Secretaria Municipal de Cultura, que falará sobre “Antero de Quental: o Homem”.

 

A SRA. VALESCA DE ASSIS: Exmo Sr. Ver. Omar Ferri, Presidente em exercício da Câmara; Ilmo Sr. Dr. Jaime Raposo Costa, Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal, representando o Sr. Embaixador; demais autoridades presentes; Senhoras e Senhores. Tomar parte nesta solenidade que lembra o centenário da morte de Antero de Quental é uma honra que só posso atribuir à determinação com que um dia procurei entender o homem que se escondia por trás das “Odes Modernas” e dos “Sonetos”. Antero de Quental é a maior referência intelectual da Ilha de São Miguel, Açores, e tive a felicidade de conhecer. Percorrer a geografia sentimental do poeta é uma via sacra obrigatória a casa onde nasceu, às ruas percorridas, o mar que o fascinava como possibilidade de transcendência, o banco de praça onde encontrou a morte, o lugar onde para sempre repousa. Procurando apenas dimensões humanas do poeta, encontrei um místico, um filósofo e, acima de tudo, um ativista político de rara dedicação e alcance. Encontrei, também, um homem tão vivo que se matou. Por quê? Na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, há inúmeras teses acadêmicas que tentam justificar um ato tão agressivo num homem geralmente tão manso de coração; nas ruas de Ponta Delgada, percebe-se com todos os sentimentos as determinantes emocionais para as inquietações de espírito que sempre acompanharam Antero e que se faziam mais agudas quando estava na Ilha. Trata-se da famosa “questão da insularidade”: para que se compreenda o homem, é necessário ter-se em conta o meio. E o meio físico, nos Açores, é algo muito mais concreto na determinação de humores do que nós, continentinos brasileiros, podemos imaginar. É muito conhecido o “torpor açoriano”, que se fazia sentir fortemente no fatídico 11 de setembro de 1891. As Ilhas dos Açores são belíssimos pontos verdes perdidos no Atlântico, a 1.500 quilômetros da costa portuguesa e a 4.000 quilômetros dos Estados Unidos da América do Norte. A natureza foi caprichosa ao desenhar as ilhas, com seus vales profundos, suas falésias gigantescas, seus deslumbrantes lagos interiores. “Olhar (porém) de dentro das ilhas é diferente de as olhar de fora”, como bem assevera Álamo de Oliveira: “A casca da maçã não é propriamente a maçã. A casca é que possui a sedução, mas é por detrás que a filosofia concebe, é a dúvida que a torna fecunda, é a sua relatividade e, afinal, toda a sua razão de ser”. (...) “A extrema fixidez e uniformidade da ordem espiritual repugna à sociedade moderna”.

Antero de Quental foi, também, como já afirmamos, um incansável agitador político, tendo sido, na verdade, o primeiro socialista português. Durantes anos, assinou artigos e dirigiu publicações de cunho socialista. Não restringiu-se a ser um teórico. Empenhou-se, na prática, em abdicar de sua origem nobre; aprendendo a arte de tipógrafo, decidiu mudar-se para Paris e lá viver como um operário. Segundo alguns autores, aí adquiriu a doença que iria acompanhá-lo até o fim, “a tortura está em não poder morrer”. Refere-se, em carta a Alberto Sampaio (14-08-1878), os sintomas recorrentes: “De saúde não vou pior: mas cada dia sinto mais o vazio da minha existência, a minha impotência, a minha inutilidade, de sorte que a vida se me tem tornado em extremo pesada. Olho para a morte como abrigo seguro, mas vejo-a longe ainda!”

As relações de Antero de Quental com a morte estão muito presentes em sua obra:

“Em mim, os Sofrimentos que não saram: /Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem. /Como torrentes da Dor, que nunca param /Como num mar em mim desaparecem./Assim a Morte diz (...)” (O que diz a morte) (6-89)

Ou na epígrafe ao “Elogio da Morte”: “Morrer é ser iniciado”. Assim, também, na sua correspondência: “Eu cá vou indo. Cada vez mais místico, e penso que daria um sofrível monge, se não fossem estes nervos miseráveis, inimigos da paz de espírito. Querem alguns dizer que muitos santos foram histéricos e neuróticos. Não posso crê-lo. Este estado de neurose é o menos favorável à serenidade interior, e, por conseguinte, à sanidade”. (Carta a João Lobo de Moura, 17-07-1878).

No fim da vida, Antero idealiza para si uma espécie de nirvana, uma morte sublimada, onde pensava encontrar a salvação. Diz: “O universo tem pois como lei suprema o bem, essência do espírito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo deixou de ser um cárcere: ele é, pelo contrário, o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o universo sabe para que existe; só ele realiza o fim do universo”. (Carta a Wilhelm Sterck, 14-05-1887). Estranhas considerações, vindas de um homem cuja fé havia sido varrida nos anos da mocidade? De um homem que apoiou e acreditou nas idéias revolucionárias, revolucionistas de Darwin e no socialismo de Proudhom? De um homem que efetivamente praticou o socialismo? De um homem que defendeu a originalidade individual e os direitos terrenos de cada indivíduo? Não, em Antero nada é estranho, ou tudo é estranho. Mente polifônica, abriu caminhos onde outros não vislumbravam nenhuma direção. Esteve na vanguarda de muitas coisas, não importa se não fechou um sistema. Isto é, aliás, uma virtude. Porém, nem a morte, nem o nirvana terrenos estavam ainda ao alcance de Antero. Perto dos 50 anos, após mais uma desilusão política com a Liga Patriótica do Norte, decide viver em São Miguel com as filhas pequenas de seu amigo Germano de Meireles, que, por orfandade, adotou. Logo, porém, se arrepende; não de ter adotado as meninas, que afinal lhe deram o sentimento de família, mas da decisão permanente, de permanecer permanente na ilha. Escreve a Joaquim de Araújo (30-07-1891): “Começo a acreditar que não andei bem avisado em vir estabelecer-me em São Miguel. Cada vez me sentindo mais incompatível com esses ares doentios, que o Charcot tanto condenava, e que efeito me torturam, atacando-me sem descanso os centros nervosos. A atmosfera é de uma irregularidade pasmosa!! Decididamente, é ponto assente que já não posso aclimar-me por essas paragens que tanto encantaram a minha primeira mocidade”. A Oliveira Martins (17-06-1891), já referira: “é verdade que essa quadra do ano é a pior daqui, e aos próprios da terra ouço queixarem-se da depressão fisiológica produzida por este ar de estufa, substância mora, prosseguir”. Os lindíssimos vales são crateras de extintos vulcões, as escarpas são lavas abruptamente resfriadas. Nos Açores, os movimentos internos da Terra são visíveis ao olho e sensíveis ao olfato: pelas fendas onde a Terra respira, fervem águas e cinzas, e há sempre um cheiro de enxofre no ar. Dezenas de sismos diários – a maioria imperceptível – desassossegam o açorita. E, se os cães ladram na aparente quietude da noite, é certo que um tremor mais forte se fará sentir. São nove ilhas, as dos Açores, mas de São Miguel (a de Antero) não se vêem senão as nuvens e o contorno vago de Santa Maria. Isso em dias muito especiais. E, em se vendo Santa Maria, é sinal de chuva iminente. Chuvas que são constantes, aos açoites dos ventos, batendo nos nervos. Uma aberta no céu, por mínima que seja, é razão de alegria pública. E o oceano, azul, infindável e estático, ao invés de libertar, aprisiona o ilhéu ao seu pequeno mundo, na medida em que dificulta as trocas culturais e comerciais com o continente. As comunicações e os transportes dependem, até hoje, das disposições climáticas. Por isso, o açoriano é um homem vitimado pela insularidade.

A Jornalista gaúcha Rejane Salvi, que por dois anos viveu em São Miguel, registra, em seu “Panorama Açoriano”, várias análises sobre a influência do clima no comportamento do açorita. Cita, por exemplo, Luiz da Silva Ribeiro, que afirma que o meio insular atuou bastante no moral dos homens que, em “que geraram um exacerbado saudosismo, a emigração como uma necessidade instintiva e o conservadorismo das idéias, ao lado de influências qualitativas, como a apatia do espírito (...). Para Arruda Furtado, enquanto o povo que ficava em Portugal vivia momentos de dominação e conquistas, a população dos Açores caía, no torpor do clima, debaixo do terror de fenômenos vulcânicos e sob o jugo e a exploração dos capitães donatários. Vitorino Nemésio mencionou uma espécie de embriaguez do isolamento que impregna a alma e os atos do ilhéu: “Estamos enraizados pelo habitat a uns montes de lavas que nos penetram. Somos de carne e pedra, os nossos ossos mergulham no mar” (Açorianidade, ICALP). Para Francisco do Carmo, “o vulcanismo e a sismicidade são uma característica do viver insular, razão da insegurança tantas vezes sentida e da angústia freqüentemente experimentada. Basta viver nas ilhas para entendê-la”, afirma. Neste lugar, e sob tais circunstâncias, nasceu, a 18 de abril de 1842, Antero Tarquínio de Quental.

Sua família era fidalga e profundamente religiosa, fatores que virão aumentar os tormentos do poeta. Muito pequeno, vai estudar em Lisboa e, depois, em Coimbra. Mas sua alma ficaria para sempre aprisionada ao movimento de atração-repulsão que liga o ilhéu a sua terra. Nas férias, voltava para casa; nas doenças e dificuldades, também. Em carta ao seu grande amigo Oliveira Martins (15-07-1877), comenta: “Tive um certo prazer em tornar a ver a minha terra, ainda que não sei porquê, e talvez só por instinto, pois deve haver uma relação profunda entre o homem e a terra em que nasceu e se criou. Ou será talvez que esse isolamento num canto do mundo, que já é meia morte, ou uma morte antecipada, convenha muito ao humor em que há muito me sinto”.

Antes dos 20 anos, Antero matricula-se no curso de Direito da Universidade de Coimbra, onde trava contato com novas idéias literárias e políticas que chegam nos trilhos da estrada de ferro recém inaugurada, ligando Portugal ao centro da Europa. Em 1863, publica as “Odes Modernas”. Logo, se vê envolvido na célebre “Questão Coimbrã”, polêmica literária que travou com o mitológico Antonio Feliciano de Castilho, na verdade um confronto entre o ultraconservadorismo de Castilho, na verdade um confronto entre o ultraconservadorismo reinante em Portugal e os anseios de independência intelectual e liberdade de opinião. É desse grupo coimbrão que sai o núcleo da Geração 70, que conta com nomes como Eça de Queirós, Teófilo Braga, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, entre outros. Esta nova geração de intelectuais promove, em 1871, sob a liderança de Antero, as conhecidas Conferências do Cassino, exclusivamente apontando temas polêmicos, tais como: Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (Antero Quental); Realismo na Arte (Eça de Queirós).

Mas, já em 29-08-1891, poucos dias antes de sua morte, tem uma posição firmada, que comunica a Oliveira Martins: “Depois de uma melhora que me iludiu (...) tenho piorado consideravelmente e resolvo-me a voltar para o Continente.(...) Conto em partir daqui no Açor, a 18 de setembro. (...) Procurava o definitivo e aginal, ainda agravei o instável e provisório que tanto me assustava. Paciência. Fui, talvez, imprudente, contei demais com as minhas forças, seduziu-me a idéia de, depois de tantos anos de excentricidade, acabar como toda a gente. Mas vejo que a excentricidade tinha de ser definitiva, submeto-me a ela, agravada por mil cuidades”.

Mas antes que chegasse o 18 de setembro, antes que o Açor levantasse âncoras do Porto de Delagada, houve o 11 de setembro. Naquele dia, o clássico “torpor açoriano” se fazia sentir nitidamente esmagando as pessoas no pesado ar de estufa. Depois de um dia depressivo, Antero andou pelas ruas da cidade, visitou amigos, e, por fim, sentou-se no banco que fica junto ao muro do Convento da Esperança, construído em terras doadas, no século XVIII, por antepassados seus. Sob uma âncora gravada na pedra, Antero acomodou-se; os braços dessa âncora são atravessados pela palavra “esperança”. O que terá pensado? O que o levou a trazer a arma com que buscaria a libertação final? Um tiro não foi o bastante; disparou novamente a arma. O povo acorreu, o povo açoriano aceitou como uma fatalidade o gesto daquele homem dilacerado, e o respeitou, até porque ele era um espelho. Podemos especular, como alguns, que afinal ele descansa, como queria, na mão de Deus, eternamente. Eu, de minha parte, prefiro ficar com o cerne das idéias filosóficas de Antero de Quental, resultado de sua prática social. “Para falar em nome da consciência humana lesa, não é necessário ser-se filósofo. Tal protesto, ainda na boca do homem mais rude, deveria sempre ser escutado com respeito. A autoridade das consciências não se pesa na balança das escolas”. Muito obrigada. (Palmas.)

(Não revisto pela oradora.)

 

O SR. PRESIDENTE: Com a palavra a Profª Rosa Maria Morsch, que representa a Universidade do Rio dos Sinos, cuja palestra abordará “A trajetória mental de Antero de Quental em Sonetos”.

 

A SRA. ROSA MARIA MORSCH: Selecionei para este momento alguns sonetos e comentários críticos acerca da obra de Antero de Quental. Sonetos que trariam Antero de Quental a este momento. (Lê.)

“Além de representar o melhor da produção literária de Antero, os sonetos documentam a trajetória, digamos filosófica e moral do autor, expressando um percurso em que várias fases ou modos de ser e pensar são perceptíveis.”

Os poemas da segunda fase, publicados primeiramente em “Odes Modernas” (1865), representam a fase do apostolado social, do realismo ortodoxo e radical.

Correspondem esses sonetos a uma poesia revolucionária e de entusiasmo juvenil diferente daquela que o distingue no cenário da literatura portuguesa como poeta da poesia metafísica.

O papel do poeta e da poesia: na nota final ao volume, Antero fala sobre a missão revolucionária da poesia e expõe o seu conceito de poesia. Diz: “...a poesia moderna é a voz da Revolução, porque a Revolução é o nome que o sacerdote da história – o tempo – deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso século”. (Antero)

Esta postura vai ao encontro dos postulados realistas que almejam uma poesia a serviço da revolução social em marcha.

No poema “A Um Poeta”, Antero expressa esse ideário, numa linguagem vibrátil, agressiva e retórica, a lembrar Vítor Hugo.

“Tu que dormes, espírito sereno /Posto à sobra dos cedros seculares, /Como o levita à sobra dos altares, /Longe da luta e do fragor terreno, /Acorda! É tempo. O sol, já alto e pleno /Afugentou as larvas tumulares.../Para surgir do seio desses mares, /Um mundo novo espera só um aceno. / Escuta! É a grande voz das multidões!/São teus irmãos, que se erguem! São canções, /Mas de guerra...e são vozes de rebate!”

A visão do Cristianismo: na concepção de Antero, “o Cristianismo foi a revolução no mundo antigo; a Revolução não é mais do que o Cristianismo no mundo moderno”.

No poema “A um Crucifixo”, demonstra o espírito revolucionário do Cristianismo. Vê em Cristo um antepassado dos revolucionários de hoje; concebe-o numa visão humanizada que tem, na medida em que, pelo tom coloquial da linguagem, nivela Cristo ao homem explorado e oprimido.

O idealismo como traço marcante: Antero norteava-se por um idealismo que, via de regra, se viu incitado a adotar atitudes de visionário, sonhador em relação à vida, à morte e à mulher. A visão idealismo da mulher está em “Ideal”.

Da visão romantizada, caminha para a expressão da beleza transcendental, ideal concretizado nas imagens do “Soneto à Virgem Santíssima”, provavelmente decorrente de sua vivência e experiência no seio da família de tradição católica arraigada.

“Num sonho todo feito de incerteza, /De noturna e indizível ansiedade, /E que eu vi teu olhar de piedade. /E (mais que piedade) de tristeza...”

Em Antero, o traço marcante é sempre a ânsia de um ideal, das perfeições utópicas ou sobrenaturais. Do ideal não atingido decorre o desejo de evasão e o sonho, pois, conforme confessa, (in A Germano Meireles)

“Só males são reais, só dor existe; /Prazeres só os gera a fantasia;/Em nada, um imaginar, o bem consiste /Anda o mal em cada hora e instante e dia”

Sentindo o sonho irrealizável e as indagações transcendentes sem resposta, tudo ecoando no vazio cósmico, Antero vai entregando-se no pessimismo angustiante confinado nos versos de “Tormento Ideal”.

“Pedindo à forma, em vão, a idéia pura, /Tropeço, em sombras, na matéria dura,/E encontro a imperfeição de quanto existe”

O Palácio da Ventura: mais uma vez percebemos a busca frustrada do ideal simbolizado em “O Palácio da Ventura”. Este, um dos mais belos poemas, tem dois valores distintos: filosoficamente, se realiza na interpretação metafísica da vida; esteticamente, pela forma. Este soneto testemunha a inócua luta íntima para atingir um bem inexistente. Poderia ser visto como a expressão de toda a trajetória de vida de Antero.

Entre 1873 e 1874, depois de agitado período de propaganda revolucionária, Antero adoece de fadiga e desilusão, porque as suas crenças políticas e opiniões filosóficas, o seu socialismo e o seu hegelianismo já não satisfaziam o seu espírito severamente crítico. Se já não era católico, era ainda um espírito inquieto de religiosidade e necessitado de crenças.

Não conseguindo conciliar forças antagônicas em conflito, Antero entrega-se ao pessimismo, ao ceticismo presentes nos sonetos como “Palácio de Ventura”, “Lamento”, “Mea Culpa”, “Anima Mea”, “Espectros”, “Elogio da Morte”, “O que Diz a Morte”.

Em “Anima Mea”, encontramos vestígios da postura romântica pelo pessimismo exacerbado que culmina numa visão tétrica e macabra da morte.

O seu temperamento e sensibilidade faz com que, tomando o mesmo tema, expresse uma visão mais depurada e aguda do homem torturado, que perdeu todo o sentido de viver.

No poema “O que Diz a Morte”, Antero mais uma vez ratifica a alta dose de pessimismo.

Conclusão, Adolfo Casais Monteiro: enquanto viver a língua portuguesa, os sonetos de Antero permanecerão como a mais profunda expressão de drama de consciência vivido em todos os momentos duma existência que procurou, em si própria, um sentido ao universo. As fases desse drama podem ser estudadas em função das idéias dominantes a cada um desses momentos, e em função das leituras filosóficas que os sonetos sucessivamente refletem a delinear-se, pois, a evolução filosófica de Antero.

Se Antero foi mais filosófico ou mais poeta é um campo a investigar. Antero foi, sem dúvida, essencialmente um dramatizador dos problemas de consciência.

O certo é que coube realmente a Antero realizar algo sem exemplo no passado cultural português: identificar os atos do homem com as idéias do filósofo e as produções do poeta.

Não basta, diz Oliveira Martine, reconhecer ser ele um homem que “pensa o que sente e sente o que pensa; será preciso acrescentar: e vive o que sente e pensa”. Muito obrigada.

(Não revisto pela oradora.)

 

O SR. PRESIDENTE: Ouviremos, agora, a Profª Maria Luiza Remédios, que representa a PUC, tendo por enfoque “A Filosofia de Antero de Quental e as Idéias de 1870”.

 

A SRA MARIA LUIZA REMÉDIOS: Sr. Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, Ver. Omar Ferri; Dr. Jaime da Costa, da Embaixada Portuguesa, Senhores e Senhoras, Consulesa.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a esta Casa, através da sua Presidência, o convite feito para, em representando o Centro de Estudo de Cultura de Línguas Portuguesa, órgão de pesquisa vinculado ao Curso de Pós-Graduação da PUC do RS, participar deste Painel ao lado de tão ilustres companheiros. Gostaria, também, de parabenizar a Câmara Municipal de Porto Alegre, que promove um Painel sobre a vida, obra, idéias de um poeta, Antero de Quental, no momento em que se vê, no nosso País, a falta de interesse e o descaso dos poderes instituídos pela educação e pela cultura. (Lê.)

“De imediato, devo dizer que não sou especialista em Antero de Quental, sou Professora de Literatura Portuguesa há mais de vinte anos, e, como tal, sinto-me bem falando de um poeta português como Antero.

Para se falar sobre Antero de Quental, sua filosofia e sua relação com a Geração de 70, necessário é definir-se, brevemente, essa geração relativamente à situação da época, relativamente a certos conceitos como socialismo, republicanismo, sendo necessário que se apresentem seus componentes, ressaltando-se aqueles que foram decisivos ao nível de história das idéias, não só literárias, como filosóficas. A geração de 70, gerada e impulsionada por Antero, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, surge quando Portugal se encontrava no período da Regeneração, que vai aproximadamente de 1851, data da ascensão ao poder do Marechal Duque de Saldanha, até a proclamação da República, em 1910. Surge, portanto, como certo impulso revolucionário, no sentido de regenerar, ou melhor, transformar, regressando às origens; voltar a gerar cultura portuguesa e a literatura em particular. Regenerar muito além da regeneração política do Marechal Saldanha e de Fontes Pereira de Melo, líder de um certo pré-industrialismo português. A Geração de 70 percebe que o progresso do fontismo é aparente e tem consciência da modorra em que se encontra o país, constatando o parasitismo da política de transporte fontista, oposta a um sistema de produção verdadeiramente realista e mobilizador.

A par de uma situação política, econômica e social bastante difícil em Portugal, na época surgem idéias novas do estrangeiro que vão realmente formar a Geração de 70: as idéias de Hegel, de Marx, de Proudhon, de Comte, de Michelet, que vinham diretamente de Paris para Coimbra. A descoberta de idéias filosóficas, políticas, socioeconômicas e literárias vindas da França leva à redescoberta do país. E a formação ideológica que se iniciara com a Questão Coimbrã (1865) culmina com as Conferências do Casino (1871), em Lisboa.

As Conferências do Casino revelam o socialismo utópico de Antero de Quental, que se opunha ao republicanismo de seus companheiros Teófilo Braga e Ramalho Ortigão. A diferença que se manifesta entre os componentes da Geração de 70 é muito importante para sua formação e consolidação. Pode-se exemplificar a posição anteriana através do soneto “Hino à Razão”, onde o poeta exalta uma razão bem hegeliana, que marca o primeiro momento de sua produção poética.

“Razão, ira do amor e da justiça, /Mais uma vez escuta a minha prece, /E a voz dum coração que te apetece, /Duma alma livre, só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça/De astros e sóis e mundos permanece;/E é por ti que a virtude prevalece,/E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações/Buscam a liberdade entre clarões;/E os que olham o futuro e cismam, mudos.

Por ti, podem sofrer e não se abatem. /Mãe de filhos robustos, que combatem /Tendo o teu nome escrito em seus escudos!”

Exalta a razão, porque ela é a ordem e a medida de todas as coisas, e na harmonia racional vê, como um racionalista, a essência do universo infinito e a raiz das ações humanas. Por sua vez, Ramalho Ortigão, à mesma época, contestava a situação política e a ideologia fontista. Sua posição, ao contrário da de Antero, centra-se numa limitação cultural que se apóia no positivismo comtiano. A cultura dos republicanos era uma cultura preconceituosa, cultura de positivistas amadores, para a qual as idéias só são idéias porque são racionalistas.

Nessa situação ideológica, forma-se a Geração de 70. A situação literária não foge ao modelo da ideologia política. Na sua fase inicial, o grupo coimbrão “põe em paralelo o risco da criação estética e risco da ação, da intervenção histórica”. Tal como houve oposição às idéias políticas estabelecidas, também houve oposição a uma espécie de ultra-romantismo estabelecido, que era representado por Antonio Feliciano de Castilho. Antero de Quental, em passagem da Questão Coimbrã, problematiza a forma, reclama uma literatura de livre inspiração, de independência artística: “... a essência, a coisa vital das literaturas não é a harmonia da forma, a perfeição exata como se realizam certos tipos convencionais, o bem dito, o bem feito, um arranjo e uma curiosa faculdade feita para divertimento de ociosos e pasmo de quem não concebe nada acima dessas raras, mas fúteis, habilidades de prestidigitador. (...) Provada e admirada a diferença entre um bom ourives e um bom poeta, entre uns lavrados e delicadíssimos enfeites e um sentido e pensado poema, provada fica a necessidade que tem o ministério sagrado das letras de mais alguma virtude além dos dotes mecânicos e exteriores, isto é, a necessidade de um simples e levantado espírito, duma livre inspiração, duma franqueza e independência extremas, (...) de alma, para tudo dizer”.

O texto de Antero, principalmente a expressão “um sentido e pensado poema”, revela a tensão pensar/sentir, constante em toda sua poética e um dos gérmens da poética de Fernando Pessoa. Relativamente à questão da forma que não é, como diz Antero, enfeite de ourives, sabe-se que é, ou pode ser, uma expressão essencial do conteúdo e que há uma fusão forma/conteúdo, representando nas obras mais elaboradas uma unidade cultural e mítica, estruturalmente importante. Antero de Quental tinha consciência de que o grande romantismo europeu, sobretudo ao nível teórico, nunca fora completamente assimilado em Portugal. A forma era de fato o formalismo e estava morta na poesia romântica de um Castilho, por exemplo, considerada pelo poeta açoriano pouco culta e sem preocupação filosófica.

É, portanto, numa fase de conflito entre a revolução sociopolítica, de outro, que Antero e a Geração de 70 se formam. Os conflitos cristalizados entre passado e presente, entre ação histórica e estética literária conformam o poeta.

Assim, Antero, cujo socialismo era marcado muito mais pelas idéias de Proudhon e não de Marx (a quem pouco conhecia), propunha um socialismo progressista e utópico. Criticando a teoria do socialismo de Oliveira Martins, diz que a teoria de socialismo é o progresso, mas não o de Babeuf, ou de Fourier ou de Saint- Simon, o de uma escola ou de uma seita, antes simplesmente o da humanidade (...) Resultado de quê. Do triplo movimento moral, político e econômico das sociedades.

Ao lado desse conceito humanista e utópico de socialismo, Antero defende o instinto e o impulso vital, revelando o fascínio do irracional e o vitalismo anárquico, em carta a Oliveira Martins (1866): “ (...) o instinto, com todas as suas vozes, tem levantado a sua celeuma no meio do silêncio que eu, com a minha razão, julgara impor a este ser. (...) O instinto! A tradição! A espontaneidade! A natureza!”

O que se vê na essência é um Antero dividido entre o progresso como domínio racional da natureza e um vitalismo anárquico. Dividido entre duas maneiras de estar, ser ou pensar, Antero antecipa Fernando Pessoa, que também multiplicava-se em “máscaras”; era, como ele mesmo dizia, “um drama em acto”, um palco onde contracenavam suas múltiplas maneiras de ser, agir ou pensar.

A dualidade é uma característica do ser humano. O homem é dual: alterna o luminoso com o noturno; sendo tais estados liminares, ou um deles acaba por se impor ao outro. Segundo Antônio Sérgio, em Antero tal não aconteceu. A dualidade tornou-se irredutível, excessiva pelo grau de consciência que, no poeta, atingia. Observa-se que o Antero apolíneo (luminoso), quando por filósofo ou intelectual ativo e irreverente, alterna constantemente com o Antero norturno (romântico), homem de temperamento mórbido, do homem cujo desejo é voltar ao útero materno. Antero “luminoso” é o das “Odes Modernas”, da “Questão Coimbrã”, do ativismo de seus anos de política, das “Tendências da Filosofia na Filosofia na Segunda Metade do Século XIX”, escrita um ano antes de sua morte.

Consciente do que se passava no seu eu, resolvia sua unidade na obra que escrevia. E que as dualidades não significam que elas não se resolvam no uno individual que é cada homem. Ao contrário, quanto mais opostas são “as duas metades platônicas”, mais elas se resolvem na unidade do ser.

Por isso, Antônio Sérgio considera que, no plano filosófico, existe em Antero “uma passagem do vocabulário de Hegel para o de Schopenhauer, correspondendo à passagem do filósofo para o homem; a passagem da inteligência de um intelectual para a sensibilidade de um enfermo...”

Lucidamente, Antero diz: “A minha cabeça conserva-se lúcida, mas o resto insurge-se, ora o resto em toda a gente é alguma coisa: em mim é muitíssimo; (...) Penso como Proudhon, Michelet, como os ativos; sinto, imagino e sou como o autor do Imitatio Christi (...) Pensa que renego as nossas grandes verdades filosóficas e morais? Engana-se. Vejo-as tão bem como nunca. Simplesmente vejo-as, nada mais.”

A oposição entre o sentir e o ver era a oposição entre sua natureza e seu espírito que, de certa maneira, ratifica a sua dualidade socialista.

Nesse sentido, deve-se salientar que o revolucionarismo de Antero traduzia a aspiração do conservador de uma ordem social, mais justa e eqüitativa a instaurar. Nem revolução permanente, nem luta de classes, nem ditadura do proletariado, nem materialismo dialético, nem mesmo qualquer interpretação das idéias morais com o sentido que o materialismo histórico considera como superestrutura! Pura afirmação do pensar filosófico e do sentido moral, tão pura que, perante a eticidade do seu socialismo, a fundamentação científica e as dissidências doutrinais e de técnica de ação mal se fazem ouvir. Por isso, Antero se opunha à ação revolucionária, podendo-se dizer que tanto ele quanto seus companheiros foram convictos antimarxistas e anticomunistas, pois consideram “o movimento proletário estreito, incapaz de realizar conversões, assustador para a burguesia. O seu socialismo procedia, assim, de uma preocupação moral, de uma generosidade fidalga, de um tradicional cristianismo e não de um refletido exame do desenvolvimento dos fenômenos sociais”.

Em Antero agita-se o drama de uma classe que experimentava o receio das forças que criara, contrastando com uma vontade de transformação sociopolítica radical do país, a qual conduziria logicamente ao progresso, e não a uma nostalgia dum passado glorioso e mítico.

Finalizando, pode-se dizer que Antero de Quental, líder da Geração de 70, vai encontrar seu poder criador numa atitude de distância perante a história, isto é perante a revolução no domínio histórico.

Tal atitude é marcada pelo exílio interior que se exprime literariamente no poeta, através de um sentido trágico que vai até o niilismo da fase final de sua obra poética. Muito obrigada.

(Não revisto pela oradora.)

 

O SR. PRESIDENTE: A última painelista é a Profª Maria Luiza Armando, que representa a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A sua palestra terá por enfoque “Antero de Quental: a Geração de 70 e a Literatura Sul-Rio-Grandense”.

 

A SRA. MARIA LUIZA ARMANDO: Ilmo Sr. representante da Embaixada de Portugal em Brasília, Exmo Sr. representante da Presidência da Câmara Municipal, os representantes das autoridades consulares em Porto Alegre e demais pessoas aqui presentes. Eu estou representando a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, talvez indevidamente, porque colegas mais antigos na área talvez fizessem essa representação melhor do que a minha. Em todo o caso, eu a faço com muita satisfação, não só pelas pessoas que organizaram essa Sessão, a quem agradeço o convite, mas também pelo assunto que é aqui veiculado. Eu gostaria de começar colocando que esse assunto é, antes de tudo, o século XIX, ou seja, o século da consolidação daquela revolução da razão e da ciência e começou no Renascimento e mesmo antes, em certas correntes da Idade Média. É o século, também, da Revolução Burguesa iniciada no século XVIII e que, ao final deste mesmo século XIX, depois de ter instalado na sociedade, de ter feito a sociedade a imagem de uma classe que primeiro foi ascendente, e, depois, se instalou no poder, chegava já a uma decepção com todos esses ideais que acompanharam a grande Revolução Francesa. Século fundamental para a contemporaneidade, isso é, século fundamental para todos nós, porque o nosso século, não é demais repetir, é sob todos os aspectos um filho do século XIX, sobretudo por essa importância que adquiriu no século XX, a tecnologia que é filha da ciência. Essa ciência, então, que conseguiu chegar no século XIX, digamos que ao começo do seu apogeu. Em todo o caso, não vou falar aqui sobre esse complexo do século XIX, embora fora altamente importante, vou começar falando sobre a minha geração. Passo, então a ler a “Minha Geração”, que, graças a heranças de gerações anteriores, ainda ouviu cantar em versos musicados do velho Guerra Junqueiro, “Pela estrada a fora, toc, toc, toc, vai o jumentinho e a velhinha errante”, ou, então, “Oh! Pescador da barca a vela, onde vais com essa donzela”. A minha geração, graças a essa herança, ainda leu, em tenra infância, “As Fadas”, que dizer de Melusina, bem como outros versos, belamente ilustrados e nunca esquecidos: “A primeira opulenta...”

A minha geração também leu, nos bancos duros do ginásio, também leu sonetos que, expressão dos dilaceramentos de Santo Antero, tanto condiziam com a educação para o ideal com que ela, a minha geração, foi marcada.

E, no alvorecer da adolescência, remexendo em preciosidades da biblioteca familiar, a minha geração leu, também, às escondidas, o ramoso “Estudo Anatômico”, que Mestre Laudelino Freire incluíra na “Pequena edição dos sonetos brasileiros” (105 sonetos brasileiros): “Fora uma meretriz. O rosto belo...”, e cujo autor é o sul-rio-grandense Fontoura Xavier.

Anos deveriam passar sobre essas leituras infanto-juvenis, para que entre esses textos se estabelecessem nexos, para que esses nexos se estendessem à literatura regional – pois essa é a geração, também, a que o regional, de certa forma, foi o último a chegar.

Dessas leituras – ou, melhor, desses textos e seus autores – trago agora dois itens: de Antero, “O Palácio da Ventura”; outro, do sul-rio-grandense Fontoura Xavier, de quem não se traz aqui o “Estudo Anatômico”, e, sim, “A Bola de Ouro”.

Muitos anos foram necessários, pois, para que se aproximassem esses textos entre si. E o tê-lo feito sugere o título desta breve comunicação. Mas isso exige uma observação prévia: uma concepção viciosa da literatura comparada – como, aliás, de qualquer área comparada – leva a tomar por termos de comparação quaisquer objetos, quando, na realidade, somente as afinidades histórico-culturais – e, em conseqüência, literárias – justificam, em princípio, as comparações. O contexto, portanto, e as relações entre contextos, são dados prévios.

Mas as evocações antes feitas mostram, justamente, que não muito longe vão os tempos em que a literatura portuguesa – não sei se a recíproca era verdadeira – era lida e conhecida no Brasil. Quanto mais não o seria no século XIX e em inícios deste, apesar da influência francesa que aqui se verificou então.

Se esse era o caso geral – o que já autorizaria a aproximação comparativa –, mais ainda era – e o é – no caso em questão aqui.

Antero, a Geração de 70 e a literatura do Rio Grande do Sul. Não é necessário que eu me detenha em Antero, já iluminado pelas intervenções que antecederam esta minha. Mas não posso me privar de evocá-lo, o que, de certa maneira, já é evocar toda a sua geração. E “evocar” é bem o termo aqui: um chamar que configura e faz surgir. E talvez ninguém melhor do que Vianna Moog – no admirável “Eça de Queirós e o Século XIX” – consiga fazê-lo. De fato, é admiravelmente vivo que Vianna Moog faz surgir Antero em meio às atividades estudantis, contestatárias ou não, de Coimbra. Por exemplo, como um dos mentores da Sociedade do Raio, quando, nas horas perdidas da madrugada, desafiava-se Jeová: “Antero era um dos cabeças do Raio. Dizia-se até que uma noite compareceu juntamente com outros embuçados, em meio de tremenda trovoada, ao alto do Penedo da Saudade, de onde intimam Deus de relógio em punho, a provar sua existência. Como prova, exigia que um raio o partisse ao meio, dentro de sete minutos. O raio não o partiu, mas, caindo nas proximidades, fez com que o grupo de dispersasse impressionadíssimo”. Ou quando evoca Antero, segundo imagina o vissem pela primeira vez os olhos do jovem Eça, quando Antero, já lendário, em pé nas escadarias da Sé Nova de Coimbra, dourado ao luar, “golpeia as alturas” e improvisa, imaginando o bom Deus “a conversar com Garrett” (p. 28). Ou quando da visita do Príncipe Humberto da Itália – era a época dos Carbonários –, o autor dos “Sonetos” que Antero já era, indicado para saudar o príncipe em nome da “mocidade liberal”, lança o seu desafio ao status quo. Ou quando concita os acadêmicos a abandonarem Coimbra, marchando sobre o Porto, “berço da liberdade em Portugal”. Mais tarde, avulta ele, ainda, no quarto de Batalha Reis em Lisboa, quando o grupo do Cenáculo, perseguindo a idéia pura, estudando o socialismo, esperava e preparava a Revolução. Mas basta a evocação do vulto de Coimbrã para a breve abordagem que o tempo aqui me permite. Pois, como bem diz Viana Moog, “foi pela porta de Coimbrã que o século XIX penetrou em Portugal”. E é quando rebenta a Questão Coimbrã que mais claramente se começa a desenhar, no que tem de mais característico, aquela que será chamada a Geração de 70, só comparável, talvez, em importância, à nossa contemporânea que, nos anos 40, 50, se delineia no seio de dado regime político. Antero, em cujo passivo já figuravam então as “Odes Modernas” (1865) e a monografia sobre a Carta Encíclica de Pio IX, escreve, então, o famoso “Bom Senso e Bom Gosto”. Uma vez mais, agigantado sempre e em tudo desmesurado, se destaca no quadro da Geração, na qual, ao lado de Oliveira Martins e Eça, avultará.

E, segundo Vianna Moog, a sua vitória, em duelo contra Ramalho Ortigão, logo após, será a derrota simbólica do século XVIII, que o século XIX vence. Se o inquieto grupo não fez a revolução social que pretendia, logrou operar, no entanto, a evolução literária portuguesa. A “Musa Moderna” dos que Antero chamou “Os Hereges das Letras”, a aliada dos que Vianna Moog chama, os “Fanáticos das Ciências”, que pensavam o mundo como progresso e com otimismo, a irmã da “Idéia Nova”, essa se imporá. Pouco mais tarde, a “Idéia Nova” e a “Musa Moderna” estarão batendo às portas de um contexto inteiramente outro, de uma província perdida no extremo sul do Brasil, onde o liberalismo já se manifestara numa guerra civil de dez anos.

Nesse tempo, aliás, não constante a precariedade das comunicações, as idéias já marchavam campo afora, após atravessar os mares. Antes, portanto, da planetarização contemporânea, já havia heróis de dois mundos. A alusão, claro, é a Giuseppe Garibaldi, que entusiasmou as gerações européias de 60, 70 e que, antes disso, fizera arrastar lanchões, epicamente, pelas nossas areias litorais.

Houve, é certo, fatores brasileiros e mesmo regionais a tingir de próprio a “Idéia Nova” e a “Musa Moderna” em suas manifestações crioulas. Houve, por exemplo, a nível nacional, a Escola do Recife Sílvio Romero e, a nível local, os Brummera, como lembra Guilhermino César. A “Idéia” e a “Musa” não são outras, porém são as mesmas: nesses idos, a Europa freqüentava habitualmente as alcovas da média culta nossa, após ter viajado penosamente, como a moura encantada das salamancas, nos porões dos navios. E, como a moura das salamancas, adquirirá feições locais aqui. Vários nomes tomou a “Musa Moderna” nessa fase indefinida de sua estréia brasileira e sul-rio-grandense, ao associar-se com a também aqui chamada, a nível brasileiro, Geração de 70.

Segundo Machado de Assis e outros críticos – que, como diz Regina Zilbermann, já quase nada tiveram a acrescentar ao que Machado diz –, essa geração, ao contrário da sua xará portuguesa, não lograria alojar convenientemente as viajantes européias – a “Musa Moderna” e a “e a Idéia Nova”. Ao mesmo tempo, mercê de sua defasagem no tempo, irá mais longe, incorporando elementos que, na Europa, caracterizaram uma época posterior. Aquela, justamente, que se marcará pelo desencanto da “Musa”, sinal de um desencanto mais profundo, o do século do progresso e da ciência em seu entardecer.

Precisamente, um dos nomes que aqui tomou a “Musa” importada foi o de “Modernismo Cientificista”. Na Europa, então, o cientificismo era já contestado pelo dito decadentismo finissecular. Aqui, esse mesmo citado, Fontoura Xavier, ilustra o dito: em “Antologia de Poesia Brasileira – Realismo e Parnasianismo”, na seção “Poesia realista – uma introdução parnasiana”, figura, dele, o poema “Flor da Decadência”, apresentado como típico do Decadentismo. No ano de 1884 – que Guilhermino César considera limite inferior do quinto período da literatura do Rio Grande do Sul –, são publicados aqui dois livros de poemas: “Opalas”, de Fontoura Xavier, e “Iluminuras”, de Aquiles Porto Alegre. Em plano nacional, nesse mesmo ano, aparece “Meridionais”, de A. de Oliveira. Era a afirmação da “Musa Moderna”. Ao contrário de Aquiles Porto Alegre, que ficou como cronista da província, apenas, Fontoura Xavier adquiriu renome nacional como poeta e ainda hoje freqüenta, como se viu, antologias brasileiras. Isso não quer dizer que ele tenha adquirido, na sua geração, aquela que, segundo R. Zilberman, “se interpolou entre o predomínio da estética romântica e a afirmação do parnasianismo”, a projeção que teve Antero na sua geração da brasileira, foi líder intelectual e figura maior o citado Sílvio Romero. Mas Fontoura Xavier projetou-se, porque escolheu destino diferente da maior parte dos intelectuais sul-rio-grandeses de sua época: abandonou a província. Por ter estudado Direito na célebre faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo – aquela onde, no dizer da canção popular, moravam a saudade e a alegria –, e ter aí convivido com a nova geração efervescente de republicanismo, Fontoura se tornou abolicionista e republicano. E nisso foi tão iconoclasta e irreverente como iconoclastas e irreverentes haviam sido os coimbrãos da “Sociedade do Raio”. Seu libelo antimonárquico – que, aliás, não reeditou –, intitulado “O Régio Saltimbanco” (1887), verberava a instituição, ridicularizando o sóbrio e respeitável Pedro II, que, dois anos após, encontraria o caminho do exílio francês e nele morreria; com um punhado de terra brasileira – diz-se – sob o travesseiro.

Fontoura publicou seu folheto no Rio, onde se fixou, dedicando-se ao jornalismo. Após, levou vida de diplomata, não como Antero, mas como Eça. O cosmopolitismo é nele traço a que os estudiosos dão relevo. A terra sul-rio-grandense e mesmo brasileira não deixa rastro, praticamente, no que ele escreveu; e o que deixa, soa falso. Foi também excelente tradutor, inclusive de Poe e Baudelaire. Opalas reflete uma trajetória que parte de “Musa Livre”, primeira das três partes de sua obra poética. Esse conjunto de poemas parece ser, segundo estudiosos, a posse que melhor reflete a poesia dos anos 70 de que aqui se trata, com uma temática republicanista e com o elogio à “Idéia Nova” – ao mesmo tempo, nova idéia e postura política. Como para os portugueses de 70, essa geração foi seduzida pelo evolucionismo, pelo cientificismo – especialmente o positivista – e pelo socialismo à maneira de Praudhon. Como para os portugueses de 70, trata-se, para esses brasileiros, literariamente, de anti-romantismo. Em 1878, a Batalha do Parnaso tentará ser, nesse particular, o que fora a Questão Coimbrã, mas não o conseguirá. Como os críticos, liderados por Machado de Assis, o leitor esclarecido detecta, nos autores nossos dessa fase, o influxo português da Geração de 70. A Bosi cita, a respeito, as “Odes Modernas” de Antero, como leitora, porém preferirei os textos mencionados antes aqui. Mas, antes de me referir a eles, devo observar que, para o além do apontado – isto é, para além do que os relaciona às suas gerações, do papel que ambas tiveram em seu contexto histórico e literário e daquilo que, por via do contato histórico literário, transitou de una geração para outra, nada, para além disso, aproxima biográfica e – se for válido aqui falar de psicológico – psicologicamente, Antero de Quental e Fontoura Xavier. Antero, homem de suas origens açorianas, como de sua pátria continental, em cuja vida político-social sempre buscou, direta ou indiretamente, atuar; Antero, torturado no pensamento como na emoção; Antero, o luminoso e o noturno, que, segundo Antônio Sérgio, levou ao máximo grau possível tanto a lua quanto a sombra; Antero, coerente com suas contradições vividas até o suicídio. Fontoura, trota-mundos; segundo o modernista hispano-americano Rubén Dario, “poeta, diplomata e homem do mundo” – homem do mundo e não do pensamento; descomprometido, assim como com suas origens (dado histórico, mas, também, simbólico), também, aparentemente, com os sentimentos expressos em seus poemas; poeta, sim, mas também ministro plenipotenciário várias vezes que, jovem, abraça programaticamente a “Musa Moderna” ou, com violência juvenil, a causa republicana; mas que, sob a República, morre, não em sua terra, mas, significativamente, em Lisboa; Fontoura, um esnobe, segundo Guilhermino César, também dândi, segundo contemporâneo e segundo seus textos; Fontoura, que, se na primeira parte de “Opalas” reflete a “Idéia Nova” e a “Musa Moderna”, nas seguintes pratica, como observa Zilberman, a autoparódia, o humor e, mesmo, o sarcasmo e o cinismo – bem diferentes dos de Antero, no entanto. Antero, fiel à língua portuguesa; Fontoura, que no seu próprio dizer tinha “mil línguas” – escrevendo em espanhol, francês, italiano e inglês; poeta republicano, sim, mas “com intervalos de Don Juan” –segundo crítica da época, crítica que o endossa, aliás, pensando que o poeta devia ter “uma hora de Napoleão e outra de Lovelace”. Antero, que segundo Oliveira Martins molhou sempre a pena no seu sangue; Fontoura, cuja produção, mesmo quando engajada, ressuma descompromisso; Fontoura, como Antero, anticlerical, mas, ao contrário desse, sem nenhuma religiosidade verdadeira.

O que interessa em literatura, no entanto, são, antes de mais, os textos. Quanto aos poéticos de Antero, me restrinjo aqui aos “Sonetos”, que, antes de A. Sérgio, foram organizados e prefaciados por Oliveira Martins. Tomo os “Sonetos”, não para retomar o dito, mas para voltar a “O Palácio da Ventura”. Insere-se ele na segunda série de sonetos, segundo Oliveira Martins, que seria a menos original psicologicamente, e artisticamente a mais brilhante. E insere-se no que A. Sérgio denomina “terceiro ciclo dos Sonetos”, o ciclo do “sentimento pessimista”. O Palácio encantado da Ventura que o cavaleiro andante busca, pleno de desejo e sofrimento, esse Palácio, ao abrir enfim as suas “portas o’ouro”, com fragor, revela, apenas, ao peregrino “cheio de dor, silêncio e escuridão e nada mais!” Segundo A. Sérgio, esse soneto é uma espécie de tragédia em quatro atos, levando à decepção final. E o crítico observa que, no segundo período da produção sonetística de Antero (1862-1866), em que se inseriria esse soneto, “a obra lírica tem também seu quê de poema épico ou narrativo”. Considere-se, também, outro aspecto. Escute-se agora um poema de Fontoura Xavier, “A bola de ouro”. Não é o caso de trazer aqui uma análise técnica, feita essa, embora, e sobremodo interessante. Trata-se de ressaltar algum que outro aspecto. Por exemplo: esse poema de Fontoura teria de comum com a fase poética de Antero em que se insere “O Palácio da Ventura” o aspecto formal, apontado por A. Sérgio, do lírico com algo de épico-narrativo. No entanto, na expressão do “eu poético” de “O palácio da Ventura” se encontram os “ais” sempre grandiosos e dilacerantes de Antero. A eles se opõe, no poema de Xavier, a impossibilidade objetiva do “eu poético”, caracteristicamente parnasiana. Mas é outro ponto que me interessa levantar: no poema de F. Xavier há um jogo de aproximação e distanciamento de sujeito e objeto – jogo esse disposto com absoluta simetria e no interior de uma estrutura perfeitamente binária, em que, se bem examinado o texto, vê-se que o que conta é a tópica do sujeito e o olhar que, a partir de seu topo, lança ao objeto, cujas transformações, a bem dizer, são passivas. Esse poema, se bem examinado, sugere, por forma externa e forma interna, uma conclusão: o objeto de desejo, se é belo e valiosos – valores que se confundem –, enquanto for inalcançável, ou seja, deslocado de sua posição de ideal – visto de perto –, o ideal deixa de sê-lo: só a será enquanto estiver distante daquele que para ele tende. O parentesco me parece óbvio, malgrado as diferenças. A impossibilidade de adequar a forma concreta à idéia, ou a realidade concreta ao ideal não é nova – basta lembrar a lírica de Camões. Também não é exclusiva de Antero: ao contrário, eu quis mostrar como, possivelmente, e talvez por leituras anterianas de Fontoura Xavier, se encontra nesse. Em Fontoura, esse mesmo núcleo de significação se reproduz, por exemplo, no poema “A minha estrela” (Ruínas, secção de Opalas).

Em Fontoura, porém, é um traço entre muitos outros. Em Antero, é um traço que, com outros afins, constitui um complexo consistente, que é, além disso, quase todo o Antero lírico. Isso se pode comprovar por um a leitura aleatória dos “Sonetos”, em que parece recorrente.

“Vereis as formas, filhas da Ilusão, cair desfeitas, como um sonho vão...” e quantas mais passagens poderiam citar.

Ademais (coerência entre o poético e o vivido), Antero parece morrer desse mal, enquanto que em Fontoura que se poderia dizer tratar-se de base poética. No poema citado, a “Ilusão” é reentronizada em seu lugar, pacificamente; e, no contexto da obra, a decepção a esse respeito é compatível com outros vários aspectos do poético e do existencial, equivalentes e, inclusive, passíveis de expressão através de uma erudição descomprometida e postiça que em Antero não costuma intervir de forma alguma. Fontoura parece ser um fingidor – não à maneira de Pessoa, e, sim, à maneira comezinha.

Por isso, eu me permito discordar relativamente de R. Zilbermann, que escreve: “A ausência de resposta para a questão metafísica incomoda o escritor”, motivo pelo qual essa questão seria por ele remetida ao nível ideológico. A questão metafísica, a meu ver, incomoda realmente Antero; não, Fontoura. Ela incomoda Antero, poética e existencialmente, até a morte, como também incomoda, realmente, outro sul-rio-grandense, Alarico Ribeiro, poeta já de corte formal simbolista e que está a pedir a atenção dos críticos.

Os “eus poéticos” de Antero e Alarico, sim, parecem viver de fato o vazio do homem que se privou dos deuses e desse vazio ressentiu-se. E, ante um céu vazio – um “céu abandonado”, diria Alarico – esses “eus”, após terem eliminado os deuses, sucumbam ante sua falta.

Como Herculano, Antero é anticlerical; não, anti-religioso, diria até – parodiando o subtítulo de uma obra sobre a literatura no século XX em relação ao Cristianismo – que, no centro de seus sonetos está o silêncio de Deus, ou que a eles subjaz a obsessão pelo problema de Deus. Um Deus que não sabe ele próprio como se chama, deuses que não sabem por que razão foram criados pelos homens (“Divina Comédia”) perpassam o discurso poético. Ainda quando escarnecido, ainda quando encarnado na Idéia, ou assumindo outros disfarces, Deus é a réplica de um homem que também não sabem quem é. (Homo p. 203), porque perdeu os deuses.

Eu chamaria a atenção para um detalhe que realmente me impressiona bastante, é a capacidade que tem certas obras de estarem tão internas em cada um dos seus fragmentos que nós podemos fazer uma leitura aleatória e nós vamos sempre tombar sobre os mesmos aspectos, experiência essa feita sobejamente por mim com “Sertão, Veredas”, de Guimarães Rosa, e que estou reproduzindo com os “Sonetos”, de Antero. Muito obrigada. (Palmas.)

(Não revisto pela oradora.)

 

O SR. PRESIDENTE: Colocamos a palavra à disposição para quem quiser usá-la. (Pausa.) Com a palavra o Sr. Jaime Raposo Costa, representando o Embaixador de Portugal.

 

O SR. JAIME RAPOSO COSTA: Sr. Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, eu trago o aplauso do Embaixador de Portugal, em Brasília, e do Governo Português a essa iniciativa, que ganha um especial significado, por parte de uma Instituição Brasileira.

Eu julgo que se o silêncio pode, em muitas alturas, em muitos momentos, ser mais eloqüente do que palavras atiradas ao vento, eu julgo que deveria, talvez, silenciar-me nessa Sessão, em que uma mão cheia de brasileiros chamou a si os méritos de tratar de um poeta que, tendo nascido em Portugal, é, sem qualquer sombra de dúvidas, um patrimônio brasileiro, por ser um patrimônio da língua e da cultura portuguesa. Mas o que me sensibiliza mais é verificar que o Rio Grande do Sul, a Universidade e a comunidade trata dos valores portugueses associado aos valores do Arquipélago dos Açores com tanto, eu diria, com tanta dedicação pessoal que se confundem os nomes e as obras, como acabamos de ouvir na sua palavra. Eu tive a felicidade de conhecer uma geração de brasileiros, dos quais eu incluo o Prof. Guilhermino César, de quem fui discípulo em Coimbra, e, para citar outro gaúcho ilustre, o Prof. Casado Gomes, para quem, estou totalmente convicto, para quem a cultura portuguesa era a cultura brasileira, para quem a cultura brasileira era a cultura portuguesa. Esses homens foram homens de formação francesa, curiosamente, foram homens para quem a cultura estrangeira era a cultura francesa, e eram homens que dominavam e dominam – Guilhermino César ainda está conosco – e lembro ainda Élvio Simões – para não referir outros ilustres nomes, paro aqui – que dominavam Padre Vieira, dominavam Eça de Queirós, dominavam Antero, dominavam Herculano, como se de uma convivência constante dependessem. Talvez dominassem melhor os portugueses do que os contemporâneos brasileiros. Julgo que está ultrapassada a fase de afirmarmos constantemente que no Brasil permanece uma tradição de cultura portuguesa. Isto já é uma frase um pouco gasta. Acho que Brasil/Portugal já integram uma unidade de cultura que já se ultrapassa a si mesma, a si própria e que começa a ganhar espaço no contexto internacional, independentemente de sabermos quem é que está mais a contribuir para ela. E é curioso, depois de esses ilustres professores universitários, Guilhermino César e Casado Gomes, parece que houve um período, logo a seguir, em que a juventude universitária brasileira perdeu um certo contato com essas linhas marcantes da cultura portuguesa, e agora eu surpreendo-me, porque a palavra que eu mais ouvi citar, nesses dois dias em que estou no Rio Grande do Sul, é a palavra resgate. Parece que há uma retomada, uma ânsia de compensar algum tempo que eventualmente se tenha perdido, e um regresso, como tal esse sentido da palavra regresso, ou regresso é qualquer coisa que eventualmente ficou adormecida, mas que de repente desponta na plenitude de vermos, numa Sessão, seis ou sete brasileiros falarem com domínio pleno de um escritor que eu acho que os gaúchos já consideram do Rio Grande do Sul. É realmente extraordinário podermos verificar que, à medida em que os tempos vão passando, as ligações entre os dois países se firmam, menos nos contextos dos discursos oficiais, mas mais na realidade do dia-a-dia. Eu acho que tudo isto é motivo de nos orgulharmos por pertencermos a uma comunidade que se aproxima naturalmente de várias maneiras de si mesma. E acho que, no momento em que a Câmara Municipal de Porto Alegre toma esta iniciativa, uma iniciativa absolutamente descomprometida, não se consegue ver que interesses possam estar por trás de uma coisa destas. Sentimos que as pessoas e as instituições se honram a si próprias, para tomarem consciência de que os valores culturais ainda são a maneira mais segura de permanecermos através dos tempos. Muito obrigado. (Palmas.)

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: A Mesa foi informada que o Sr. Jaime Raposo Costa terá um compromisso às 17 horas e, lastimavelmente, esta Sessão Especial deverá ser encerrada, mas antes gostaria de dizer duas palavras, a primeira com relação a todas as palestras proferidas, de que elas honrariam qualquer assistência, em qualquer cidade do Brasil ou de Portugal, porque foram profundamente cultas e eruditas. A Presidência da Câmara de Vereadores agradece a presença da Consulesa de Portugal, do Sr. Jaime Raposo Costa, do Sr. Régis René, do Sr. Firmino Sabrito, que representa a ARI, de todas as senhoras professoras, painelistas, do Feyo e desta preclara assistência, de todos os presentes, agradeço a presença de todos em nome da Câmara de Vereadores.

 

(Levanta-se a Sessão às 16h41min.)

 

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